maria joao patronilho

artista plástica

 

 

Estes ‘cruzamentos subliminares’ projectam nas telas o impacto que as palavras de José Luís Peixoto, mais precisamente as da obra ‘ a casa, a escuridão’, tiveram na pintura de Maria João Patronilho.

Este é um momento fulcral do trajecto da pintora: o lugar onde tudo se clarifica nas palavras dos outros, o instante onde tudo o que se transporta connosco muda algo na forma de exprimir. O cruzamento.

Afinal, de que somos feitos? Arriscamo-nos a responder que de todas as emoções que se gravaram subliminarmente nas nossas regiões mais subterrâneas e que foram moldando o nosso olhar. 

Hoje, é este o olhar da Maria João.

E nós, como vemos este olhar? Talvez a Francisca, sua filha, tenha a resposta mais simples e precisa:

Quando estás aqui, vejo a tua arte, o teu sentido de ser, o teu vermelho e preto numa tela branca. Vejo o sol, o fogo, a chama.

Qual é a distância que permanece quando as mãos de dois amantes se aproximam, se afastam, voltam a se encontrar? Qual é a natureza e a qualidade do espaço entre dois corpos próximos, diferentes mas constituídos pela mesma substância?

Nas grandes superfícies de cor que Maria João Patronilho dispõe sobre o suporte material do quadro, por baixo da aparente homogeneidade da tinta, aparecem subtis diferenças de texturas, de espessuras, de sobreposições cromáticas, de variações formais que sugerem histórias e personalidades diferentes. O campo do quadro, multiplicado frequentemente em diferentes painéis homogéneos na composição mas autónomos na leitura, é o espaço de encontro destas narrativas individuais.

Não existe uma relação entre uma figura e o fundo, mas sim uma relação, subtil, mínima, quase imperceptível quando comparada com a extensão das áreas ocupadas pelas cores dominantes, entre figuras complementares.

As formas coincidem, mas não encaixam com a precisão matemática dum desenho racional; são formas complementares, mas a sua relação pertence mais ao âmbito da sedução, do que à lógica da geometria. O seu encontro é feito de progressivos afastamentos e aproximações, é uma linha subtil que ganha espessura e torna-se espaço narrativo. Por sua vez este espaço permite que outras cores, dispostas no substrato do quadro em momentos anteriores, voltem a aparecer, atribuindo à narrativa a sua dimensão temporal e tornando visível o próprio tempo de elaboração da pintura.

A pintura de Maria João Patronilho sugere portanto diferentes níveis de leitura e de narrativa: deles, emerge, como traço comum, o desejo de uma composição arquitectónica ao mesmo tempo lógica e irracional, coerente mas emotiva e sedutora.

textos e críticas sobre a obra

virgínia barros, out 2008, acerca de “cruzamentos subliminares”

francesco cancelliere, out 2008, acerca de “cruzamentos subliminares

Sofia Pinto Basto, Maio2009, “Sobre a Obra”

textos e críticas

Quando nos confrontamos com estas obras da Maria João o nosso primeiro olhar reconhece de imediato a presença de outros universos, exteriores à Pintura, mais próximos da Arquitectura e da Escultura. A expressão de uma terceira dimensão, ilusoriamente representada ou simplesmente sugerida, assim nos encaminha.

No entanto, este primeiro olhar, torna-se incapaz de dar conta daquilo que se passa nestas telas, demonstrando-se insuficiente para as interpretar: Um segundo olhar revela-nos que a aparente geometria que circunscreve as manchas cromáticas está longe de se fixar a partir da nossa perspectiva convencional.

Se por um lado aceitarmos que a tridimensionalidade é, nestas telas, evocada, por outro entendemos que o rigor da geometria colapsa e se apresenta manifestamente aquém de criar, por si só, um sentido. A espacialidade não é aqui senão instrumento para atingir uma outra expressão.

Operam estas obras num qualquer "não-lugar" como se a espacialidade onde nos movemos se manifestasse indigente para conformar as superfícies. Como se o olhar da Maria João não fosse capaz de se fixar em nenhum dos campos específicos das artes denominadas plásticas ou das investigações sobre o espaço, próprias da Arquitectura. Como se as telas surgissem como o reflexo plástico de uma intenção de superação destes limites sendo, simultaneamente, elas mesmas, esse caminho.  

A genealogia destas telas é explícita no próprio percurso da Maria João, a sua formação arquitectónica, esteve na origem da investigação. Uma intuição espacial apurada, estruturada por um trabalho constante na
área da Arquitectura é visível desde os seus primeiros trabalhos.

Se no início a expressão desta formação específica era manifesta na escolha experimental das texturas, no rigor da composição, no equilíbrio entre o vazio e o espaço preenchido, ao longo das suas investigações os limites foram sendo transgredidos pela força da matéria, abandonando a regra arquitectónica a uma regra mais forte, conformada apenas por uma intuição primordial e por isso mais absoluta.

Opera este novo olhar como se, conhecida a "regra" em toda a sua extensão, dominada a geometria e o rigor da configuração espacial, se procedesse agora a uma vontade de abandono desse universo, "des-aprendendo" o que se domina para recuperar um sentido mais essencial. Entrega-se aqui o domínio da regra que se absorveu e recebe-se em troca uma outra mais fundamental, mais estruturante, que reconhece apenas a matéria, a cor, a mancha como sentidos em bruto, forças impossíveis de circunscrever.

Não é por isso estranho que se recorra à poesia como ponto de partida destas investigações, na tentativa de, em
simultâneo, usar a precisão sem encerrar o sentido, de circunscrever sem fixar, possibilidade que é própria da palavra poética.

O percurso de "des-aprendizagem" é lento, multidireccional e a experimentação obrigatória.

A procura desse território neutro onde aquilo o que já se conhece se torna uma grelha de interpretação de novos sentidos, tornando-se em "fundo compreensivo", invisível mas presente, revela-se de várias formas.

Num primeiro registo, esta "inversão da compreensão habitual" expressa-se no modo como se usa a composição para, em seguida, a subverter, "desequilibrando" a superfície pelo recurso à "desproporção", à assimetria, à transgressão dos próprios limites da tela (Calém 2008), tornando manifesta a força telúrica da matéria, e o fundo primordial da Pintura.



É-nos exigido que, através do olhar da Maria João, aceitemos "des-aprender", cedamos a "des-habituar" o olhar para que, como na palavra poética, consigamos aproximar-nos mais daquilo que é. É essa a ambição da arte. É essa a nossa ambição.